quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Ganhos e perdas





NY – 28/09/07


Levava em minhas mãos contos de Nelson Rodrigues. Sabe-se lá porquê, me habituei às leituras mais densas depois de conhecer o famoso trem Q, rumo a Manhatan Beach. Fato é que, de alguma forma, a prosa rodrigueana aguçou minha predileção para o melodrama. E olhar para os lados sob esse viés acabou mostrando-se bem mais interessante.
O guri tinha lá seus vinte-e-poucos anos. Era desengonçado e não tinha cara de muitos amigos. Tocava um instrumento imaginário. Um violino, acho. Pelo menos era o que o movimento de suas mãos me remetia. Tinha sob as pernas um calhamaço de partituras velhas, e as estudava cautelosamente. Bem ali, no meio daquela gente que, como ele, exibia o cansaço de um dia inteiro de trabalho. Bem ali, no meio do balançar de um trem em alta velocidade. Sentia a música (música que só ele era capaz de ouvir), e expressava essa sensação toda vez que apertava os olhos ou prendia os lábios...
Alguns, como eu, ousavam acompanhá-lo. Um senhor boliviano sentado bem à frente examinava a cena com estranheza. Coçava o bigode. Trocava para a barba. Voltava para o bigode. Talvez se perguntasse de que hospício teria saído aquela pessoa. Talvez imaginasse que notas saíam daquele violino... Difícil prever.
Outros, no entanto, ignoravam o concerto com a indiferença de quem passa por um mendigo na rua. Uma figura de feição desagradável enganava o tempo com um notebook aberto. Ria com a boca cheia de saliva. Chegava a gargalhar. Por vezes tentei alcançar o motivo da graça. Entretanto, e com o perdão do pedantismo, nada que saísse daquele individuo seria capaz de provocar e mim emoção semelhante.
Me chamou a atenção a reação de um jovem casal, que enebriados um com o outro e potencializados por duas os três taças de vinho, dançavam. Abraçados e amolecidos pelas notas imaginárias de um violino imaginário, davam um passo para lá outro passo para cá em um amplo salão, também imaginário...
Eu, ahhhh, pra variar, chorava. E para minha surpresa, alguém percebeu. Assim me despedi do trem Q, rumo a Manhatan Beach: as portas se abriram pela décima oitava vez. Antes de descer e se seguir seu caminho, um homem jovem, que carregava uma bicicleta, me avistou lá na última cadeira do vagão, e segundos antes das portas se fecharem, soltou um beijo no ar e gritou, não chore mais.
Foi bonito enxergar um pouco de poesia na engessada e tantas vezes medíocre cena do dia-a-dia. Amanhã me mudo para o centro de Nova Iorque. Consegui alugar um apartamento com duas pessoas que conheci por essas bandas... Ganharei três horas no meu dia. Perderei, sim, alguns minutos de poesia. Mas assim é a vida.

Nenhum comentário: